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Estória do Tempo Que Não Quer Esperar Para Ver

Estória do Tempo Que Não Quer Esperar Para Ver

 

O tempo, esse que passa, traz-nos outras dimensões, outras razões para a razão de outros tempos que os esquecimentos contornam de verdades que então podem parecer impossíveis por diferentes e novas. Por isso mesmo o tempo, esse que passa, esquece pela razão de que já não necessita lembrar algo que neste tempo já não é novo nem importa que seja (tenha sido) diferente.

 

Andávamos nós pelos anos noventa do século passado e, talvez, só por isso seja passado quando conheci o Pedro e a Vera. Cada um no seu cantinho de escola. Cada um no seu cantinho de terra, próximas. Uma e outra das que se dizem do interior, escarpadas nas rochas, como todas feitas de gentes, poucas por aqueles tempos.

 

Pelo encerramento das quatro salas das duas escolas, próximas, por estes tempos em que escrevo esta estória penso que menos gente ainda.

 

Por aquele então dos anos noventa ainda havia escola e putos, estavam o Pedro e a Vera que riam e olhavam e diziam coisas sem falarem e aprendiam coisas - muitas coisas – e que não necessitavam de se sentar nas cadeiras da escola porque tinham a sua cadeira. Cadeiras daquelas que têm rodas e que andavam com eles naquelas ruas de pedra e que iam com eles à escola.

 

Só pontualmente trabalhei com o Pedro e com a Vera, mais com o Pedro. O meu, o nosso trabalho era de acompanhamento aos professores, às escolas. Os tempos eram outros guardávamos a convicção que já não era o tempo de “ora deixa cá ver no que isto dá”. Por esta convicção de muitos, mesmo muitos, por aquele então o Pedro e a Vera tiveram novas cadeiras, com umas rodas melhores, mais e melhores artefactos para acomodar o corpo às cadeiras e às salas, as tais das duas escolas. O Pedro e a Vera tiveram computadores e uns programas novos, artefactos para aprenderem mais e melhor na escola e dizerem, sem falarem, mais coisas na escola e em todos os lados daquelas ruas escarpadas e noutras ruas que pudessem conhecer. Tudo comprado com dinheiros da comunidade europeia disponibilizados pela então Direcção Regional de Educação, via Centro de Área Educativa. Parece-me que os dinheiros não eram bem para estas coisas, mas também podiam ser para estas coisas, sobretudo porque muitos acreditávamos que aquele era o tempo de não esperarmos para ver.

 

Muitas vezes a Vera vinha com a avó, com quem vivia, ao Centro de Recursos de Novas Tecnologias (CB), o segundo criado no país após uma formação financiada por fundos da comunidade europeia. Aproveitamos o saber dos formadores, o saber de alguns formandos, os artefactos diferentes e novos e tivemos por convicção (muitos em muitos serviços - a Teresa a Zé,...) que não era o tempo de esperarmos para ver. A Vera e a avó vinham aprender como fazer depois, com os tais artefactos novos, na escola e em casa. Era ai que eu às vezes as via a rirem-se muito com a professora Lurdes que trabalhava no tal Centro e também trabalhava nas escolas, com as escolas. Com a da Vera e com a do Pedro e com muitas outras de outros putos de todo um distrito e, às vezes, de outros distritos de toda a zona Centro que nos pediam e também acreditavam que não era o tempo de ficar a ver.

 

Com o Pedro estive muitas vezes na escola ao lado das colegas para vermos como acomodá-lo na tal cadeira de rodas, como acomodar os tais artefactos novos, que imagens introduzir para acomodar o currículo e aprender mais e melhor e mostrar o que aprendeu. Houve até um dia que chegámos à hora em que o Pedro tinha que mudar a fralda, ali mesmo numa mesa daquelas onde pomos os livros da escola, ali mesmo ao fundo da sala onde o Pedro e outros putos aprendiam. Não havia outro espaço, só outra sala onde outros putos aprendiam separada por um hall que dava para duas grandes portas de madeira.

 

Não esperamos para ver mais vezes, na semana seguinte compramos um biombo com os tais dinheiros da comunidade europeia que, segundo parece, também não eram para comprar biombos. Um biombo daqueles simples que se podem colocar em qualquer sala mesmo daquelas que são para aprender, daqueles que fazem com que as coisas não fiquem escondidas mas fiquem mais intimas, mais dignas.

 

Iamos muitas vezes só para falarmos com a mãe do Pedro, às vezes na escola, no tal hall com as duas portas, outras na sua casa, outras no café e riamos e às vezes também nos zangávamos connosco e com outros que o tempo ia cruzando. Às vezes, a mãe chorava e confessava-se cansada de tantos tempos e de tantas gentes que esperavam para ver e interrogava-se, interrogava-nos sobre outros tempos que inevitavelmente o tempo traria. Nesses dias falávamos, ainda mais, entre o tempo de sair daquela terra e chegar a outras terras, outras escolas com mais ou menos salas, com mais ou menos putos que aprendiam e professores que necessitavam, mais ou menos de nós, de quem necessitávamos para acreditarmos juntos que era aquele o tempo.

 

Esta é uma estória do tempo que passa e por isso o tempo trouxe o Pedro e a Vera até ao 4.º ano de escolaridade e neste tempo o que tínhamos para ver era muito pouco, mas tínhamos coisas para ver. Vimos a outra escola que ficava numa terra com mais gente, com ruas com menos pedras. Uma escola mais escarpada. O Pedro e a Vera vieram para essa escola, não tinham outra, vieram para o 5.º ano de escolaridade. O Pedro e a Vera foram os primeiros nessa escola que vieram com a cadeira, a tal de rodas, com os artefactos para aprender coisas e os artefactos para dizerem coisas. O Pedro e a Vera foram os primeiros em todas as terras do distrito e talvez para além do distrito haveria poucos, que naquele tempo vieram para uma escola com mais gente, com mais salas. Os primeiros que não esperaram para ver e vieram com todos aqueles artefactos diferentes que eram deles.

 

O Pedro e a Vera iam e vinham todos os dias de táxi, dos poucos que havia por aquelas terras. Pelo que ouvimos dizer, os três – Pedro, Vera e taxista – riam-se muito durante aqueles tempos de viagem e falavam de coisas que o Pedro e a Vera gostavam. Falavam da escola e do que aprendiam, dos amigos que tinham e dos muitos que ainda não tinham, dos namoros e mesmo quando tinham que esperar mais um bocadinho porque o senhor se tinha atrasado com um serviço ou quando as cadeiras, as tais de rodas, teimavam em não caber na bagageira riam-se, riam-se muito segundo nos contavam.

 

Mas naquela escola os tempos ainda eram muito de “deixa cá ver no que isto vai dar” e a razão de alguns arranjava muitas razões para que o tempo estivesse errado, mesmo que cada um desses alguns, individualmente, dissesse que o tempo estava certo. Pelo tempo nós sabíamos que era difícil. Por isso falamos, falamos muito com toda a gente daquela escola. Oferecemo-nos para estarmos muitos dias e fazermos em conjunto, mas os tempos daquela escola eram diferentes. Sentia-se que sentiam que para diferentes à diferença desses tempos já bastavam o Pedro e a Vera. Não necessitavam de nós. Necessitavam de mais recursos, diziam-nos.

 

Por aquele tempo havia falta de professores ditos especialistas, por isso foram colocadas duas professoras que trabalhavam pela primeira vez com alunos que levavam para a escola a cadeira, a tal de rodas, e tantos artefactos para aprenderem e dizerem coisas como os outros alunos. Quando estavam connosco queixavam-se dos tempos dos outros professores e sobretudo dos tempos do director que dizia que a culpa daqueles tempos era nossa e, sobretudo nomeada como sendo minha, a tal culpa daquele tempo. No entanto o director quando estava connosco, com um sorriso aberto, assegurava-nos que este era o tempo, o tal tempo do diferente e do novo, mas queixava-se dos tempos iguais e velhos que, segundo ele, eram de todos os outros na escola e das tais professoras que não eram tidas como especialistas e das gentes que não tinha para mudar fraldas numa escola que estava pensada para alunos sem fralda e de gente que não tinha para empurrar cadeiras, as tais de rodas, que o Pedro e a Vera levavam.

 

Pedimos a colocação de uma assistente operacional só para essas coisas das fraldas, das comidas e das cadeiras, as tais de rodas. Mais tarde ouvimos (disseram-nos e vimos) que numa escola que tinha sido escarpada para alunos que aprendiam e diziam coisas sem artefactos, para alunos que não levavam as cadeiras, as tais de rodas, a senhora fazia mais falta no bar, onde foi colocada quase todo o tempo.

 

Pedimos no centro de formação da tal escola que nos acreditasse formação dessas muito práticas que falassem dos tais alunos que tinham na escola outros artefactos para aprenderem e dizerem coisas e que traziam na bagageira do táxi a sua cadeira, a tal de rodas. Mas a professora responsável pelo centro de formação ia-nos dizendo que aquele ainda não era o tempo, ia-nos dizendo que o director o tal que nos assegurava dos tempos diferentes e novos dizia na tal escola que aqueles tempos eram de outros que não dos que estavam naquela escola. Procuramos os tempos de outros centros de formação e os tempos de associações e serviços e lá fomos dizendo dos tempos que, naquele então dos anos noventa do século passado, tínhamos por convicção e formação que eram diferentes e novos. Mas as gentes de muitas escolas do distrito e quase todas as daquela escola preferiam as formações de tapetes de arraiolos e de natação que esgotavam e eram pensadas por níveis e por isso todos os anos tinham sempre muita gente nos tempos que eram escarpados no centro de formação daquela escola. Por esses tempos eram essas as formações que esgotavam e faziam brilhar um centro de formação de uma terra que tinha pouca gente.

 

Lembro-me do tempo de uma reunião onde decidimos juntar alguns para percebermos que tempos afinal cada um tinha. Foi, pela manhã, um tempo penoso. O meu colega que normalmente fazia do tal professor bom, zangou-se. O meu colega zangou-se muito e falou mais alto e saiu da reunião. O meu colega mais parecia eu em alguns dos meus tempos e o diretor zangou-se mais com as tais professoras que não eram especializadas porque tinham falado do tempo dele, dando a entender que no próximo ano podiam não ficar colocadas naquela escola, na escola da terra onde moravam (como não ficaram) e zangou-se com a professora responsável pelo centro de formação e, embora menos, com uma outra professora que não era directora mas também estava na direcção e zangou-se connosco e disse-nos directamente que esses tais tempos diferentes e novos eram nossos e não eram da escola que era dele e do seu tempo. Ainda mais se disse quando os tempos de cada um se conheceram e encontraram num mesmo tempo, mas isso são outras estórias que não cabem no tempo desta estória.

 

Mais tarde, quando o meu tempo profissional já não era o daquelas terras mas por elas passei porque o meu tempo pessoal a elas está ligado por proximidade e lazer, fui visitar o Pedro e a mãe do Pedro. Disse-me por aquele tempo a mãe do Pedro, com um sorriso, que o tal director tinha lá estado em casa, sentado pela primeira vez naquela sala do primeiro andar, onde tantas vezes tinha visto o Pedro rebolar numa manta e a mãe contar-nos como, enquanto o tempo passava, ela tinha menos força, até para lhe dar banho. Contou-me ela que o tal diretor era candidato à junta de freguesia. Contou-me ela mostrando-me uma caneta e um boné (julgo recordar), artefactos daqueles que se dão nas campanhas para as juntas de freguesia e outras campanhas, que estivesse descansada. Contou-me ela que passados quatro ou cinco anos do Pedro estar na escola do tal director, se fosse o tempo do tal director ficar também presidente da junta de freguesia, seria o tempo de fazer coisas com tempo para o Pedro. Segundo a mãe contou disse, ainda, o tal director candidato a presidente da junta de freguesia que o outro tempo, o tal passado, não tinha sido tempo para o Pedro. Segundo o tal director, não porque o tempo dele, agora candidato à junta de freguesia, não quisesse mas porque os tempos dos outros que então quiseram e sobretudo “desse Colôa”, não soube ser tempo. Porque, digo eu, talvez nós não soubéssemos o que era o tempo do diferente e do novo. À mãe sorri e desejei que fosse verdade que finalmente esse fosse o tempo do Pedro e já agora da Vera e de outros que fossem para aquela escola escarpada numa terra com mais gente, numa terra menos escarpada que todas as outras em seu redor.

 

Mais tarde já noutros tempos contaram-me que o tal director não chegou ao tempo da junta de freguesia. Contaram-me pouco tempo depois que o Pedro tinha falecido. Contaram-me que a Vera, porque a avó já tinha muita idade, tinha sido levada pela mãe que entretanto tinha outros tempos menos complicados numa terra com muita gente. Contaram-me ainda que, entretanto passado algum tempo depois da mãe da Vera a ter levado, a mãe da Vera também tinha falecido. Às vezes em formações deste tempo falo do Pedro e da Vera e de algumas coisas e de algumas gentes desses tempos.

 

Até há pouco tempo, num tempo já próximo do tempo em que escrevo esta estória, contaram-me umas alunas de um mestrado que o tal director continuava director da tal escola. Contaram-me que a tal escola tinha muitos alunos daqueles que necessitam de outros artefactos para aprenderem mais e melhor e para dizerem coisas sem falarem. Contaram-me que alguns levavam a sua cadeira, das tais de rodas. Até me disseram que o tal diretor apoiava muito, neste tempo, o grupo de professores de educação especial (agora todos especialistas), porque faziam muitas coisas diferentes e novas. Contaram-me que até desenvolviam um trabalho muito específico na elaboração de artefactos para alguns alunos aprenderem mais e melhor e dizerem coisas sem falarem. Contaram-me que até tinham sites e blogues para mostrarem esses materiais e como o tal director ficava contente por ter gente tão empenhada em tempos diferentes e novos. Só posso acreditar, até porque me apresentaram no final do módulo do mestrado trabalhos práticos com alguns desses artefactos para alguns desses alunos que aprendiam e diziam coisas. Alguns levavam para a escola a sua cadeira, a tal de rodas.

 

Há tempos em que nas estórias não se pode esperar para ver. Há tempos em que muita gente esquece (?) a razão de outros tempos para que nesse tempo e outros que possam vir tenham o tempo de toda a razão, novamente nova e diferente.

 

Joaquim Colôa

10/08/2017