Ser professor para lá das margens de um tempo

Ser professor para lá das margens de um tempo

 

Naqueles dias de mocidade glorificada se, por acaso, me avisassem de que seria professor diria em silêncio da sua insanidade. Não porque lá por casa não houvesse já umas experiências que atestavam o sucesso de tais escolhas, mas porque no imaginário da minha aurora a redenção estava, com toda a certeza, em trabalhos mais românticos. Os rimances são o que são, curtos poemas épicos que na realidade nem sempre chegam a ser cantados. Um dia vejo-me, sem apelo nem agravo, que mais não fosse para registo futuro, numa sala onde se formavam educadores, diziam. Por esses primeiros dias o corpo escusou-se aos estereótipos de quem disse porque estava ali e com marca de quem atira palavras que eram o caso de toda e qualquer realidade, chocou as hipocrisias.

Por voltas do meio do primeiro ano de experiência acusei a mudança e senti que no corpo se tatuava de forma indelével, mas invisível, o interesse de quem descobre e vai construindo. A construção foi-se dizendo identidade profissional apesar de alguns professores, pela maestria de alguns professores e mais tarde pela natureza de muitos professores que também já se diziam colegas.

Concorri sempre a nível nacional e ficava em quartos de fama comprovada, mas nem sempre com companhia afamada. A identidade cresceu para lá das casas e dos quartos, com gentes que tudo deram para a descoberta da real profissão, mas também de amizades que nem os desencontros do tempo alguma vez farão esquecer.

O dinheiro era quase à justa e vinha escrito numa folha azul esverdeado ou verde azulado que entregavam na delegação escolar. Antes que fechasse corria à primeira delegação de finanças para trocar dita folha por umas notas que nos contavam frente aos olhos, com cara de quem em contagens sussurradas nos avisa de que tais notas e mais umas moedas não são para gastar, como agora aos reformados em qualquer dependência dos CTT. Hoje talvez seja só imagens da minha imaginação que a memória guarda como marcas que avisam os anos.

Sem justiça, sei hoje, nunca sabia muito bem onde e quando teria colocação, teria escola. Às vezes em setembro, outras vezes só na Páscoa. Houve concursos em que a justiça se tornava mais injusta. Tempos em que os professores que há anos alimentavam os particulares resolviam concorrer e por um ano ou dois nas escolas públicas ganhavam o direito a uma reforma mais decente. Nesses anos custava-me encontrar o nome que era meu porque ele descia na hierarquia de umas listas que pregadas em vidros de janelas e portas ditavam se demoraria mais ou menos a ser professor, esse ano. Então ouvia dizer que, havia anos, também os médicos saiam aos magotes dos seus consultórios privados e alinhavam-se em lugares públicos de hospitais de um serviço nacional de saúde que se enrobustecia. Para alguns as justiças eram mais injustas, segundo se dizia os médicos mantinham os seus consultórios porque eram seus, já os professores não podiam manter as escolas particulares porque nunca tinham sido particularmente suas. Nem meu era o equilíbrio de alguns dias, nem nunca poderia ser desequilíbrio de muitos dias. Os médicos não tinham ouvido falar da minha estória, como eu tinha ouvido falar da deles. Por isso não podia sair da escola que me tivesse calhado em sorte, como nunca podia dizer que não queria a que dizia a lista seria minha por alguns meses ou na próxima reescrita da lista o meu nome estaria envergonhado no final avisando-me de que esse ano não teria escola, não seria professor.

O mês de agosto era passado em praias de ansiedade pela incerteza do mês de setembro. Era homem feito que não queria estar em casa dos pais como quando a mocidade ainda permitia o acaso. Lembro-me de quem chegava a pagar atestados a professores para que assim pudessem ser professores mais um ou dois meses. Não, não havia subsídio de desemprego, para os professores, quando ficavam sem escola ou quando a lista não lhes atribuía nenhuma durante todo um ano. Não, as professoras no feminino, que eram a maioria, não tinham direito a qualquer tempo de maternidade o que impunha a negação do direito à paternidade. Estes foram direitos congeminados mais tarde em reuniões sindicais e em avenidas marchadas ao som de canções que o tempo sincopou.

Os fins de semana eram de ida para trazer alguma comida que o espaço destinado no frigorifico de vários permitisse. Às vezes era necessário prever com o que era mais que curiosidade de alguns desses vários. Os fins de semana eram também de ida para levar a roupa, pois os quartos não tinham máquinas para tal fim e o ser homem feito era ainda a meio tempo. No comboio comia a revolta de ver como me gastava a justeza do salário em viagens, enquanto os ferroviários e as famílias alargadas não pagavam bilhete e efabulava eu que era também por serem assalariados dos Caminhos de Ferro, que comiam lanches besuntados que transportavam em gamelas de metal. No fim jogavam ruidosamente às cartas e deixavam ostensivamente cair as cascas dos amendoins no chão, como que nos avisando que aquele era, também, território seu.

Então sabia de cor cada nova incorporação nas forças armadas, pelo número de mancebos de peito feito, ainda fardados em viagem e ainda sem descobrirem que o sítio das bagagens um dia foi descoberto como o melhor dossel suspenso para corpos ensonados ou sem saberem, ainda, como se trancava um compartimento para que dois corpos pudessem dormir tranquilamente. Quando os anos eram de cheias alguns fins de semana começavam incertos e gastos em horas de espera na estação de Vila Franca ou de Santarém e, quantas vezes, terminavam no tal quarto alugado ao ano.

Em tudo isto, havia algo que eu sabia. Um dia como que por vingança seria vinculado e, mais tarde, como que em apoteose, quase final, seria dito efetivo.

 

17 de outubro de 2020