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As Diferentes Magias de Flor

As Diferentes Magias de Flor

 

Decididamente Flor não gostava da escola. Percebia-se pelo seu choro, mais ou menos intermitente, mais ou menos forte, ao longo do dia. Decididamente era obrigação. Obrigação a que Flor emprestava uma atitude de favor que parecia fazer à mãe. Também, possivelmente, porque não conseguia ter argumentos para os silêncios do pai no momento de a deixar ao pé da porta da sala. Porta que ao mínimo sinal de estar aberta deixava sair Flor de dedo na boca, lágrimas na cara e almofada enlaçada por um braço que a acomodava com dificuldade. Almofada que, como a todos os outros, tinha sido pedida para ser colocada naquele espaço da sala que, como em muitas, se convencionou ser um espaço para conversarmos. Almofada que Flor não perdia de alcance, mesmo quando as atividades eram no pátio.

Objecto que confirmava todas as teorias de Winicot e que a nós deliciava, nos verdes anos da profissionalidade, observar. Era na prática do dia-a-dia que as teorias tinham que nos emprestar sentido. O mesmo sentido que Flor foi dando à escola que relacionávamos ser cada vez mais sentida. 

Com o tempo a escola também passou a ser de Flor e, por isso mesmo, percebia-se a decisão em marcar-lhe em cada espaço e a cada momento a sua diferente forma de estar e ser.

Todos os dias pela manhã, junto ao seu cabide, Flor abria o saco de pano. O saco mágico para a sua transformação. Sua e da escola que, agora, também lhe pertencia. Do saco saiam todas as coisas que pudessem caber na sua imaginação. Ora apareciam tamancos de madeira, ora flores para o cabelo, ora pinturas para a cara, ora luvas esquisitas aos nossos olhos, ora fatos coloridos, quase sempre maiores que Flor… Nada que impedisse Flor de, a cada dia pela manhã, se (trans)formar antes de entrar na sala. Assim foi durante três anos. Três anos em que a nossa surpresa cresceu à medida do sucesso de Flor em nos surpreender.

De entre diversas memórias que guardo da Flor, conto-vos hoje também a da ficha sobre os transportes. Daquelas fichas que se pintam e guardam no seu espaço retangular todos os tipos de transportes, desde os aéreos aos marítimos. A pequena diferença poderia ser o acrescento que decidi fazer. Um pequeno quadrado em branco onde cada aluno poderia desenhar o meio de transporte que lhe apetecesse. Um pretexto para a conversa que se seguiria.

No quadradinho da folha retangular de Flor, ondulavam uns traços vincados a lápis preto. À minha estranheza sobre a configuração de tal meio de transporte, Flor responde com um sorriso a que já há muito me tinha rendido: - Não foste tu que disseste que era para desenharmos o transporte que queríamos… é um carro. Pouco importa, para estas poucas palavras, as muitas palavras que trocamos todos. Palavras sobre os traços do quadradinho da Flor. Mais os traços de todos os outros quadradinhos. De todos os amigos de Flor que davam outras tantas estórias com o tempo da estória de Flor. Mas esta é a estória das diferentes magias de Flor.

No final dos três anos avistava-se uma daquelas transições tão comum na escola. No próximo ano Flor, como tantos outros alunos, sentar-se-ia numa sala da outra escola. Da escola que ficava mesmo atrás do pátio desta escola. Flor estaria no primeiro ano de escolaridade.

Na habitual reunião de final do ano decidi falar à mãe de Flor sobre as implicações que poderiam ter, na outra escola que ficava por trás desta escola, todas as magias que Flor concretizava fosse com ou sem saco de pano.

No ano seguinte mais ou menos a meio do ano lectivo, julgo lembrar, a mãe de Flor veio falar comigo. Flor tinha sido sinalizada para o ensino especial, assim se dizia por aquele então. Com um sorriso, parecido ao de Flor, a mãe contou-me que tinham acabado de a informar que Flor tinha uns comportamentos esquisitos. Lembrou-me da conversa que tínhamos tido sobre as magias de Flor. Falamos disso. Também me disse, como que tentando não me aquietar, o nome do professor que seria de educação especial. Um professor que eu conhecia. Um amigo de há muito dos pais de Flor e de Flor, desde o dia do seu nascimento.

Muitos anos depois, sem me recordar agora como nem porquê, recebo uma carta de Flor. De entre muitas coisas escreveu-me que estava na universidade, que era estudante de música. Contou-me muitas outras coisas em muitas outras cartas. Com o tempo as cartas de Flor e as minhas respostas foram diminuindo, até que um dia com aquele tempo que todo o tempo tem, deixaram de acontecer.

Não sei se Flor é uma boa música. A verdade é que nem sei porque conto esta estória. Talvez e só talvez porque tenho a certeza que a Flor, agora mais crescida, continua a estranhar muitos com as suas diferentes magias. Isto, acredito eu, só porque nenhuma escola as institucionalizou como especiais.

 

2016-12-04

Joaquim Colôa