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A Escola Para Todos e a Falta de Sapatos

A Escola Para Todos e a Falta de Sapatos

Há tempos encontrei o João e o Filipe, nomes que o tempo não afiança que sejam os reais, a trabalharem num restaurante daqueles que em passeios de fim de semana calho entrar. Entre a primeira vez que os conheci e este encontro passaram cerca de vinte anos. O João e o Filipe, irmãos gémeos, não me reconheceram logo. Eu também não sabia quem eram mas as imagens que povoaram de memórias os meus pensamentos, deram-me a certeza que sabia quem tinham sido.

Naquele momento, recordei com maior vivacidade o João e o Filipe quando na sua perspicácia de crianças perceberam a minha dificuldade em distingui-los, tal a sua parecença física. O meu trunfo eram os seus desempenhos escolares. Um era muito mais organizado do que o outro. Já no decorrer de interacções livres era vê-los tirarem vantagem dessa minha inépcia. Quando um deles começou a usar óculos, lembro-me de pensar como seria mais fácil nomeá-los. Mas depressa o João (ou o Filipe?) percebeu como os óculos, para além de fisicamente incómodos, poderiam ser para mim um trunfo. Uma forma de colocar fim ao jogo que por força da vivência em comum tendia a esbater-se. Os óculos poderiam ser a razão do fim de todo um jogo social que se ia transformando em cumplicidade na relação. Primeiro entre os dois e aos pouco entre nós os três. Na sua capacidade em encontrar soluções para os problemas do dia-a-dia, nada mais fácil de resolver. Algumas vezes lá usava os óculos aquele (João ou Filipe?) que deles não necessitava. A ordem era reposta, a cumplicidade mantinha-se e entre as chamadas de atenção que me eram dirigidas, lá vinha o riso deles e dos outros e o meu, porque não dizê-lo, a cada um dos meus enganos.

Recordo o João e o Filipe quando a cada intervalo da manhã corriam à tasca que ficava em frente à escola para irem buscar o pão com fiambre que lhes pertencia por mérito de um Ministério da Educação que tinha em atenção a alimentação dos alunos. De alguns alunos, naquela sala julgo recordar que os únicos. Daqueles alunos que por força, melhor dito por fraqueza, das condições económicas da família podiam não comer em casa pela manhã. Pela vontade com que corriam acredito que a comerem algo seria muito pouco. Nada que um Programa para a Promoção da Saúde Escolar financiado pela Comunidade Europeia, vigente à época, não pudesse suprir. Pelo menos assim se pensou. À época, penso eu. Não me lembro ao certo das siglas de dito programa. Dele sei que deu direito a muita formação e a financiamento de refeições matinais de alguns alunos. As do João e do Filipe eram asseguradas pela tasca, a única da povoação, que tinha feito um protocolo com a Delegação Escolar da zona. Sacados os dois pães corriam com a mesma força em direcção ao pinhal que ficava nas traseiras da escola. Uma escola sem muros, pelo menos nas traseiras. Passado o tempo negociado para o intervalo, não era necessário chamá-los por muito tempo para que voltassem á sala. Nem a eles nem a outros que também pudessem ter elegido o pinhal como espaço privilegiado de brincadeira. Só agora ao escrever estas palavras racionalizo que não me lembro de sentir a falta de uma campainha ou qualquer outro sinal sonoro que não fosse a minha voz. Estranho, agora.

Um dia o João e o Filipe não vieram à escola e outro dia e mais outro dia… Um desses dias ficou decidido, à hora de almoço ia a casa do João e do Filipe tentar perceber o que se passava. Ao subir a estrada em ascensão, vinha-me à ideia o que acontecia cada vez que o pai bebia de mais, o muito tarde que a mãe chegava a casa e o muito cedo que saia pelo muito que trabalhava na cidade próxima. Estórias sussurradas timidamente pelas bocas de outros pais, de outros alunos de outros professores.

Chegado à porta, a mãe do João e do Filipe recebeu-me com um sorriso misto de agradecimento e de incómodo. À pergunta porque estavam a faltar o João e o Filipe, a resposta foi acanhada mas imperativa.

- Só vão à escola quando tiver dinheiro para lhes comprar sapatos.

Esqueci o que pensei naquele momento. Não me lembro do mais que disse.

Há tempos quando encontrei o João e o Filipe a trabalharem num restaurante perto da casa onde nasceram, recordei ainda que o dono de dito restaurante, quando os conheci, costumava dar-lhes comida e afecto. Disseram-me então, que em troca de pequenos trabalhos. Era troca sincera e sentida assim me pareceu.

Passados estes anos, gostei de ver o João e o Filipe a trabalharem num daqueles restaurantes em que o acaso me fez ir um destes fins de semana. Entre as palavras que trocamos, há tempos, não me lembro de ter tido coragem para perguntar se tinham acabado a escolaridade dita obrigatória numa daquelas escolas ditas para Todos.

 

2016-11-14

Joaquim Colôa