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Ainda o Decreto-Lei 3/2008

Ainda o Decreto-Lei 3/2008

O Decreto Lei 3/2008 da Morte Anunciada a Concretizada

Tenho como crença que a maioria das estórias futuras se começam a delinear no presente e que transportam consigo, embora a muitos esqueça, um rol de outras estórias, imagens/acontecimentos passados. Pese, pela atitude de alguns, a vontade de apagamento por razões mais ou menos instrumentais, desses passados, o tempo desempenhará sempre o seu papel. O de apagar alguns factos mas também o de sublinhar outros. Movimento que nem sempre segue a lógica que muitos atores de diversas estórias gostariam, na sua tentativa de verdadeiros branqueamentos da memória colectiva.

Esta prosa é sobre o Decreto-lei 3/2008 de 7 de Janeiro e com ela tentamos rememorar algumas das muitas estórias que foi gerando, mesmo antes de formalmente ser legislação. No entanto, antes, impõe-se uma declaração de interesse que tem a ver com o meu apoio político e mesmo relação de amizade com alguns actores daquele então. Situação que acontece agora ainda com maior propriedade. Realidade que então como agora não me parece razão inibidora de uma acção profissional e de cidadania que recusa resumir-se a uma visão acritica do papel de funcionário público, do ser professor.

Para além disso sabemos que muitos dos seus pressupostos já vinham de um governo anterior, algo que pode voltar a acontecer com a sua substituição. Portanto este texto é um relembrar de factos e defesa de ideias em que uns se poderão rever mais que outros mas que se confinam sempre ao que reportam e não a mais que isso.

O Decreto-Lei 3/2008 de 7 de Janeiro foi, em nossa opinião, concebido com os vícios dos diplomas de vida curta e as normas de morte anunciada. Já com componentes desenhadas para uma equipa ministerial e governo, foi depois adoptada com algumas mudanças de circunstância e sensibilidade por outra equipa ministerial e outro governo. Muitos foram os motivos e motivações para a sua publicação. Uns lembrarão mais as razões politicas, outros as técnicas, relativamente a umas e outras alguns poderão sublinhar motivações mais individuais outros mais colectivas e outros ainda a da própria razão de vida (profissional), de influência e sobrevivência de alguns dos actores. Tendemos a acomodar todas as versões mas… porque de índole diversa a valorizar de forma diferenciada as várias motivações. Tal como agora, que o Decreto-Lei se se vai apresentando cada vez mais moribundo, muitos argumentarão que era uma mudança pedida, desejada pelos principais agentes educativos e pelas avaliações então realizadas (lideradas directa e/ou indirectamente pelos quase sempre presentes enquanto pressupostos agentes de mudança). Tal como naquele tempo poderemos assistir, agora, a mais um ato de adopção.

 

DO SEU PASSADO

“O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...”

Mario Quintana

 

Antes da saída do Decreto-Lei 3/2008 muitos argumentos se iam ouvindo no sentido da mudança. Muitos desses argumentos tinham origem nos próprios serviços que no Ministério da educação tinham/têm a responsabilidade técnica pela área da denominada educação especial. De entre muitos congressos, escritos, ditos e discussões lembro agora (o único critério é o de memória e proximidade) o artigo sobre as conclusões de um seminário organizado, então, pelo Fórum de Educação Inclusiva, a Associação Nacional de Professores e a Escola Superior de Educação de Castelo Branco e o documento, divulgado já muito próximo da publicação do referido normativo, da autoria de Ana Maria Benard da Costa, José Morgado, Francisco Ramos Leitão e José Vaz Pinto. No entretanto, parece que no decorrer do processo da sua elaboração muitos foram ouvidos e muitos, mais tarde, se foram manifestando como não tendo sido escutados. Em nossa opinião foi assim que alheio a diversas manifestações, impávido e sereno o diploma sai com toda a pompa e circunstância. O que significa, explicitando, acompanhado de uma máquina de divulgação legitimadora como antes nunca tinha assistido.

Recordo um desses eventos na Assembleia da República. Aqui foram alardeadas todas as suas virtualidades de inovação e mudança. Alguns Professores, individualmente ou organizados em associações (as mesmas de quase sempre) embeveciam-se de apoio e jubilo. Alguns pais, individualmente ou organizados em associações (as mesmas de quase sempre), vaticinavam o fim da exclusão. As instituições de educação especial (as mesmas de quase sempre) posicionavam-se, mais nos bastidores, para mudarem o  que em sua opinião devia ser mudado como demonstram as posteriores alterações. Naquele dia lembro-me de uma mãe que me dizia: - “agora é que os professores de Educação Especial vão ver!”

Mais tarde (este parágrafo contém algumas apreciações subjectivas a factos) fiquei com a convicção de que foi por acreditar de forma tão voluntariosa nas virtualidades do Decreto-Lei que esta encarregada de educação teve como justo prémio, integrar alguns grupos de trabalho, em representação do Ministério da Educação, numa tal agência europeia. Nos anos que se seguiram, já na vigência de um outro governo, fui encontrando essa mãe, até em manifestações na 5 de Outubro reivindicando o fim do Decreto-lei que antes tanto tinha defendido como o principal instrumento para acabar com todas as exclusões praticadas, essencialmente as que decorriam da acção dos docentes de educação especial (mas isto é um passado já quase presente).

Voltemos ao passado, ao aparecimento do Decreto-Lei. Mais tarde vieram os grandes congressos da sua legitimação. Alguns sob o patrocínio e unanimidade de aplauso de diversos especialistas nacionais e internacionais que cavalgavam a onda e (re)afirmavam que sim que agora é que seria o fim da exclusão nas escolas portuguesas.

Mas o tempo é o que é e este tempo que recordo ou o que veio depois ou mesmo o que há de vir também se faz de pessoas que duvidam, dos que não acreditam, os tais e os muitos outros continuamente adjectivados também ao sabor dos tempos e espaços. Destes, nesse tal congresso, destaco a comunicação das estagiárias enviadas pela Agência Europeia que assertivamente, mas sem nunca nomearem o tal diploma, alertavam para os perigos de exclusão que continham determinadas politicas. Por curiosidade guardei os slides que continham muitos alertas sobre aspectos que mais tarde se vieram a concretizar, mas a que só alguns por aquele então deram importância.

Outros congressos vieram, como o do Porto onde houve muitas zangas e se não deixou falar as pessoas. Foi nele que se fez um levantamento de perguntas para serem respondidas mais tarde no espaço virtual. Dessa prática de “Questões Frequentes” nada direi pois muitos se lembrarão como funcionou e o que contribuiu para a discussão e para clarificar dúvidas.

Algumas reflexões mais críticas foram surgindo no decorrer de umas “formações”, na maior parte das vezes acríticas e avessas à discussão proactiva, de divulgação e legitimação do Decreto-Lei. Diploma cada vez mais percecionado tanto na dimensão cientifica, como técnica e mesmo politica pouco legitimo mas sobretudo nada congruente e consistente. Durante tempos distribuíram-se guiões, formações e disponibilizou-se informação, como nunca antes tinha visto com outros diplomas legislativos.

Aos poucos foram surgindo as críticas. De início não muitas, diga-se em abono da verdade. Mais uma vez tendo por único critério a proximidade e memória recordo o manifesto do Fórum de Educação Inclusiva, os documentos produzidos pelo Professor Miranda Correia (com aspectos que nem sempre subescrevi), alguns manifestos e muitas comunicações sobre os Centros de Recursos para a Inclusão, sobre as Unidades Especializadas, sobre as Escolas de Referência,… Muitas que eu próprio assumi, fossem em nome individual ou em representação da já então criada Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.

 

DO SEU PRESENTE

“Não existe nada de completamente errado no mundo, mesmo um relógio parado, consegue estar certo duas vezes por dia.”

Paulo Coelho

 

 Mas as muitas teses produzidas os muitos artigos, as muitas opiniões tanto individuais como colectivas deixavam cada vez menos dúvidas. O Decreto-lei 3/2008 tinha uma morte anunciada. O tempo de uma legislatura. No máximo o tempo de um ciclo politica e governativo. Facto que se veio a concretizar. Cada vez mais se percecionava que embora com muito alarido tinha nascido com pouca glória e com espaço suficiente para nova investida dos agentes (quase sempre os mesmos) prontos a mudar, a inovar, dizem eles/elas. Temos para nós que estes ímpetos de mudanças e inovações dentro da “caixa” da educação especial como se de ressonância se tratasse é uma questão de sobrevivência.

No entretanto alguns, legitimamente, continuaram a acreditar. Lembro-me de uns alunos de um Mestrado onde fui docente assumirem alguma estranheza por eu ser crítico da legislação enquanto outro professor com grandes ligações políticas à elaboração do Decreto-lei 3/2008 o defender como o normativa mais inclusivo que já tinha sido produzido. Pouco importa, agora, o que conversamos sobre a situação sobre os tais desencontros e outros encontros de opinião e ideias. Sobre a bondade de algumas ideias que parecia que estavam no tal normativo mas não cabiam, nunca couberam quer a nível conceptual quer ao nível organizacional e muito menos das práticas. 

Outr@s, também no entretanto, sem pejo nem glória em acreditar e desacreditar seja quando for e no que for, trabalhavam já para uma nova legislação. Assim de arautos das boas venturas do Decreto-Lei 3/2008 passavam a seus indeléveis carrascos. Às vezes apropriando-se do que antes tinham negado, outras fazendo estudos para legitimar a continuidade da mudança dentro da mesma “caixa-de-ressonância”, a educação especial… O facto inegável é que a morte anunciada vem-se concretizando. Aos poucos mansamente em actos mais ou menos shakespeareanos, às vezes eivados de emoções e discursos mais ou menos freudianos. Acrescem as criticas e recomendações de alguns organismos internacionais que em alguns casos repetem as muitas criticas feitas no passado ao Decreto-Lei 3/2008, bem como a outros diplomas e politicas no geral na área  vulgarmente denominada de educação especial.

Na minha memória esta passagem da morte anunciada à morte concretizada, será para sempre a da picardia de uma das técnicas mais envolvidas na elaboração e defesa decreto-Lei 3/2008, quando há dias disse publicamente que tal diploma foi sempre frágil ao nível conceptual e pouco consistente no que respeita ao modelo. Sobre este episódio fica-me a vontade de que por estes tempos coincidissem por estes espaços o tal político com a tal técnica…

 

DO SEU FUTURO

“Perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas interessantes.”

Carlos Drummond de Andrade

 

 Mas o tempo urge e é aqui que passamos a um hipotético futuro. Assumo o risco de um mero exercício de adivinhação porque de futuro se trata…Logo assumo tanto a curto como a médio e longo prazo  um risco opinativo que pode ser considerado de mera ignorância. Mas é agora ainda futuro porque quando for novamente presente poderá voltar a ser mero exercício académico esvaído em muitas teses e artigos à espera de nova mudança precoce. Só porque o agora ainda é futuro me permite legitimamente somente alencar alguns tópicos. Muitos já abordadas noutros escritos (passado e presente), como:

- a das questões curriculares enquanto visão abrangente e a definição de dimensões curriculares enquanto pressupostas medidas educativas, vistas numa perspectiva fragmentada e prescritiva. Mesmo que pudéssemos estar de acordo com a introdução de uma medida educativa que tem vindo a ser denominada de “intermédia”, como poderemos aferir da sua “muita significabilidade” ou “pouca significabilidade”. Termos utilizados em alguns estados americanos mas aos quais referencia critérios relacionados com perfis de saída prescritivos e específicos para determinado grupo de alunos.

- a da adopção do modelo de acção Reponse to Intervention ter em conta a realidade organizacional e de práticas das nossas escolas enquanto um todo diverso no qual estão incluídos os alunos vulgarmente referenciados com Necessidades Educativas Especiais. O não se perceber de que modo os estudos críticos, as evidências sobre a implementação desse modelo foram tidos em conta.

- a harmonização entre o modelo Reponse to Intervention e o Modelo de Desenho Universal para a Aprendizagem.

- a harmonização com outros diplomas legislativos como opor exemplo com a Portaria 201-C/2015.

- a da razão da CIF, dos Centros de Recursos para a Inclusão, das escolas de referência, das unidades, coisas do tal passado, do tal modelo frágil e conceptualmente pouco consistente, diz quem sabe mais que eu sobre esta realidade.

Depois outras questões se colocam como a da relação entre o facto de mais uma vez se legislar para e dentro da “caixa da educação especial” e os aspectos gerais da avaliação, do perfil de competências (acção politica que apoio e que considero muito pertinente) e tantos outros aspectos como os conceitos para a necessária conceptualização ser consistente como: diversidade, necessidades educativas especiais, educação especial,...

Termino pedindo desculpa aos que virem nestas palavras mais do que um exercício critico mas coerente de cidadania e intervenção profissional.

 

2017-02-27